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"Se eu fosse parar, sucumbiria"

Cartunista e artista plástico, professor e fundador da JA Desenho, ele ouve apelos de familiares para diminuir o ritmo, mas admite: é necessário seguir

Jô Folha -

Quando toma papel, lápis e pincéis em mãos, não se estabelece apenas um processo de criação. É necessidade. De estar vivo. Quem garante é o artista plástico e cartunista Júlio dos Anjos. Aos 80 anos, ele divide-se entre o apelo de familiares para que reduza o ritmo e a satisfação de conviver com os alunos; novos rostos que enxerga se iluminarem através da arte desde 1983. E nestes 33 anos como mestre, passaram pelo JA Desenhos mais de 2,5 mil pessoas. De crianças, a partir dos nove anos, a idosos. Não há restrição de idade para soltar o traço e a imaginação.

É a primeira orientação do professor. As frases Não sei, Não vou conseguir e Não posso também estão vetadas. É preciso tentar. No mínimo. Foi, exatamente, assim que fez. E nunca mais parou. Desde as primeiras lições repassadas pelo pintor Adail Bento Costa e a formação na Escola de Belas Artes de Pelotas, nos anos 1960, até hoje. E se o futuro entra em pauta, Júlio dos Anjos assegura: “Se eu fosse parar, sucumbiria”.

A afirmação, contundente, se justifica. Na carne. Se ficar cerca de três meses sem pintar, o físico se manifesta. Sente-se desconfortável. Ansioso. Enfarado. “Sinto como uma espécie de energia que precisa ser posta pra fora”, resume. E, tão logo, ouve os recados do organismo, todo o mal-estar desaparece. Dissipa-se. Rápido.

A arte como rumo certo
A própria vida o conduziu à arte. O paulista Júlio dos Anjos veio morar em Pelotas aos seis anos de idade. Aos 12, ficava órfão de pai. Três anos depois, vivia a mesma dor: perdia a mãe. Filho único, o aluno do Colégio Pelotense foi acolhido pela família Puggina e, cedo, foi em busca de emprego. Não queria dar trabalho. E, nesse processo de descobrir os próprios talentos e respeitar aptidões, o jovem foi parar na Escola de Belas Artes. Foi onde fortaleceu uma convicção: faria da arte não apenas profissão. A cada nova obra atenderia uma necessidade: “Para mim, é como terapia”.

Enquanto conversa com o Diário Popular, o Cidadão Pelotense admite a dificuldade em se desfazer de papéis, mostra antigas matérias de jornais e fala no gosto especial por pintar cavalos e criar quadros surrealistas. E aproveita, claro, para compartilhar mais um ensinamento: é preciso saber enxergar o mundo.

A prova? Mesmo que estejamos com o olhar fixo ao espelho todas as manhãs, durante o curso, descobre-se a riqueza de detalhes que podem ser transpostos a olhos, boca e nariz... figuras que - teoricamente - não deveriam nos trazer surpresa. “É preciso saber enxergar, com interesse, a tudo que é forma neste planetinha”, descontrai o mestre.

De prontidão. Matricular-se no JA Desenhos foi como se aproximar de casa; conta a mexicana Nelly Zapata, 32. Em solo pelotense há oito meses, a desenhista gráfica estava longe das criações. Receber, portanto, as instruções de Júlio dos Anjos - apesar das barreiras iniciais do idioma - foi como ganhar um passaporte para se manifestar livremente, ainda que sem palavras. “Tô gostando muito de Pelotas”, afirmou Nelly, que acompanha o marido, doutorando de Bioquímica na Universidade Federal (UFPel).

Quem também correu para fazer o que seria o último curso a ser ministrado no JA, foi o jovem Vinícius Rutz Duarte, 22: “Sempre gostei de arte, de grafite, de pintura, de desenho. Vim pra melhorar a minha técnica, o meu traço, e aprender a trabalhar com sombras”. E, como discípulo, ele já sabe: um dos segredos é praticar. Sempre. Mesmo aos 80 e por prazer.

Alimentar o gostopelo desenho é uma das lições
Não importa a carreira a seguir. Se o gosto pela arte o persegue, não o abandone; mesmo que não o vá transformar em ofício. A recomendação é do mestre Júlio dos Anjos, que tem acompanhado gerações receberem seus ensinamentos e alguns, é verdade, absorverem as lições de perspectiva e descobrirem a vocação para Arquitetura e Urbanismo... Tatuadores decididos em dar leveza ao traço... Acadêmicos de Moda interessados em aprimorar croquis... Curiosos, de todas as idades; alguns sedentos por alimentar seus dons...

Foi o que ocorreu com o guri Rafael Sica - leia texto de Opinião -, no início dos anos 1990. E hoje já se vão duas décadas de carreira como cartunista. Premiações, exposições, ilustrações de conto, quadrinhos publicados, mostras coletivas, trabalhos estampados na Folha de São Paulo, feira de publicações independentes em Porto Alegre e uma certeza cada vez mais cristalizada: para o desenho, não existe o certo e o errado.

E para quem vive de e para essa arte, como o personagem Júlio dos Anjos, a convicção só cresce: “Eu não quero parar. Se o cara para, morre. É só questão de tempo”. São desabafos que a mulher Maria do Carmo e os filhos Vanessa e Júlio dos Anjos Júnior também escutam, quando o tema interrupção das atividades vem à pauta. E respeitam. Em nome da vida e da arte.

Fique atento!
Curso de verão 
Já está confirmado: as aulas, com dois meses de duração, começam a ser ministradas em 10 de janeiro

Curso completo
É provável que o mestre Júlio dos Anjos abra nova turma em março, como faz desde 1983, para desenvolver o cronograma completo, ao longo de quatro meses.

Mais informações
(53) 3027-5172

Desenhe JÁ!
"Considero o desenho, por mais comercial que possa vir a ser, um trabalho artesanal. É como um sapateiro, um relojoeiro, um marceneiro ou um sujeito que conserta guarda-chuva.

Outro ponto de vista que costumo defender nas minhas falas e oficinas é o fato por mim cientificamente comprovado de que toda pessoa desenha. Uso isso pra tentar desmitificar a tese de alguns de que se trata de talento individual. Pois bem, toda e qualquer pessoa desenha. O que acontece é que em certo ponto da infância muitos param. E param quando as noções de certo/errado começam a ser ensinadas e toda aquela liberdade de desenhar o que vem na cabeça passa a ser substituída pela repetição daquilo que é considerado o certo. Se você observar o desenho de alguém de, por exemplo, 40 anos de idade que parou de desenhar com cinco anos, esse desenho vai parecer o de uma criança de cinco anos.

Então, partindo desse ponto, o traço certo, o jeito certo de exercer essa linguagem absolutamente não existe. É você, um lápis e um papel. Simples assim.

Não lembro bem, mas era início dos anos 90. Eu queria aprender o jeito certo de desenhar e para tal me escrevi no JA Desenhos e fui aprender os truques do bom desenho com o Júlio.

Nanquim, pincel chato, carvão e noções de anatomia eram coisas que eu jamais tinha chegado perto. E como nunca fui um desenhista técnico, apanhei pra valer em todas as aulas do curso. Lembro de uma aula sobre anatomia, as proporções do corpo e as manhas para um desenho do humano bem equilibrado. Como se existisse esse padrão de humano. Pois bem, meu desenho era tosco e assim saíram os meus bonecos. O Júlio chegou do meu lado, olhou e riu. Mas não riu do cara apanhando do desenho, riu da figura incerta que eu criei e me disse: “Tu já pensou em ir pelo caminho do humor?”.

Uma aula de desenho não deve ensinar o certo ou o errado, deve justamente dar luz às características do teu tipo de desenho. E isso é coisa que levei pra vida, nesses meus 20 anos de profissão. Hoje tenho um desenho que serve para aquilo que quero contar. Serve pra me comunicar com o mundo. E pessoas, como o artesão Júlio, são importantes quando sabem ser importantes.

Vida longa ao desenho!"

Rafael Sica
Cartunista

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